quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O outro lado da rua

Os carros passavam tranquilamente pela rua de um subúrbio carioca. Eu estava à toa, como em qualquer sábado, apenas jogando conversa fora, sem a menor ideia de que naquela tarde algo diferente pudesse acontecer. Sem a menor pretensão de vivenciar algum acontecimento marcante, me dirigi até a padaria mais próxima. Quis o destino (caso exista) que naquele instante, antes de chegar onde eu pretendia, meus olhos mirassem o outro lado da rua.

E do outro lado da rua, por acaso, encontrava-se você. Andando, majestosa, com toda a graça que sabe possuir. Conquistando, a cada passo, a admiração de muitos e o coração de tantos outros. E, instantaneamente, me fazendo esquecer o rumo que tomava e simplesmente parando para olhá-la. Sem a menor condição de prestar atenção em outra coisa. E nesse momento tão curto e tão demorado eu pude tirar algumas conclusões (que, como de costume, não me levaram a lugar nenhum). Claro que a promiscuidade mental, a qual muitos homens estão submetidos, me fez logo imaginar diversas situações com você na minha vida, mas não é disso que estou falando.

Pois naquele instante eu tentava descobrir, um tanto quanto inconscientemente, o que tanto me atraiu em você. Parecia tão claro na hora, mas eu não conseguia perceber o que era exatamente. Seus olhos, mesmo com aqueles cinco a dez metros de rua que nos separavam, eram nitidamente belos e penetrantes. Seu cabelo preto, liso e comprido, também era notável. Havia um quê muito marcante – majestoso, como já disse – no seu andar. Um jeito de andar de quem sabia estar sendo eternamente observada, e fazia questão de demonstrar isso. Seu estilo de vestir também me chamou a atenção, batia com o que gosto nas mulheres, embora você parecesse ser apenas uma menina de seus dezoito anos. Uma menina que já se sabia mulher.

Depois de alguns minutos absorto pela sua beleza e vendo-a sumir no horizonte em direção ao seu palácio, provavelmente, bateu o receio de nunca mais voltar a encontrá-la na vida – receio esse que, posteriormente, viria a descobrir ser verdadeiro. Depois que me recuperei desse medo, finalmente descobri o que tanto me conquistara em você. Acontece que, quando estava a caminho de meu destino, no segundo em que virei a cabeça, olhei para o lado e te vi, você estava sorrindo. Não sorrindo para mim, como eu gostaria de crer, e sim sorrindo para a vida, para o mundo, para todos. Mas, apesar de não ser o alvo direto do seu sorriso, foi a mim que ele atingiu. Um dos sorrisos mais bonitos que já vi, e o que mais me marcou, pois em alguns segundos fez tamanho estrago. E, sem a menor dificuldade, me conquistou.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Dois segundos de amor

Era perto de meio dia quando o metrô começou a parar na estação Uruguaiana e eu te vi do outro lado da porta, esperando para entrar. A porta da composição se abriu e no segundo em que nos cruzamos – em nossos caminhos opostos – ambos percebemos o que aconteceu. O encontro dos olhares me deu a certeza (aquela certeza que só o coração pode dar) de que, naqueles poucos instantes, nos amamos. E nos amamos da maneira mais intensa que o amor pode ter. Nesse nosso sutil e efêmero encontro consegui notar que você desejou – assim como eu – que o destino nos permitisse mais do que apenas esse momento juntos.

Vi no seu olhar beleza digna de Helenas, Julietas, Desdêmonas e outras belas mulheres da literatura. Cheguei quase a imaginar nosso futuro, e creio que você também, com casamento, felicidade eterna e filhos correndo pela praia enquanto passeamos de mãos dadas. E a vontade de que o nosso instante durasse para sempre cresceu dentro de nós. E, apesar da crueldade de um encontro tão rápido e tão arrebatador, ambos sabemos que tivemos sorte de viver um amor do melhor jeito que pode haver. Porque sim, é possível viver um amor de dois segundos. E nesses dois segundos congelados no tempo nós vivemos tudo que o amor pode oferecer.

Imaginamos todo tipo de declaração desastrada que poderíamos inventar, todas as juras eternas de amor, e ainda qual caminho cada um seguiria na vida (ou que um gostaria que o outro seguisse). E isso só foi possível porque temos certeza, como disse o poeta, que estamos sempre esperando alguém que caiba no nosso sonho. E admito que você se encaixou perfeitamente no meu. Pois é, nessa grande brincadeira que é a vida, eu senti naqueles dois segundos que você era perfeita pro que eu quero. Se não para sempre, pelo menos para agora. E em um encontro como esse, o agora é o que importa. Em dois segundos, fui completamente apaixonado por você e você por mim. E nosso amor foi infinito enquanto durou.

Quando o metrô tornou a andar – agora com você do lado de dentro e eu do lado de fora – não resisti a olhar para trás. E quando notei que você ainda me olhava, não pude deixar de ter a sensação de que, junto com você, estava indo embora o meu amor. O amor mais curto e mais efêmero da minha vida. E também o amor mais intenso e (ah, o paradoxo...) mais duradouro que já vivi, exatamente por ser do jeito que foi. Um amor de dois segundos.

A vingança da História 'por fora' - comentário sobre Bastardos Inglórios

Tarantino foi qualificado como um “inovador” por parte da crítica de Bastardos Inglórios: enquanto a maior parte dos filmes sobre a segunda guerra ainda abordariam o tema muito presos a fáceis “clichês”, o recorte e a trama construídos pelo diretor teriam inovado e permitido apreender outros aspectos do evento, como o “troco” sanguinário judeu e a impossibilidade de identificar “bons” e “maus” no contexto da guerra. Mais que isso: parte da crítica louvou exatamente a liberdade com que o diretor tratou a história, dissolvendo toda a tensão do conflito num potente “olho por olho, dente por dente”, para além de qualquer discussão ética envolvendo o contexto da guerra. Estendendo um pouco mais a parte ingenuamente simplista desse argumento, Arnaldo Bloch reforça que, ao contrário de filmes “facistóides que escondem maniqueísmos em pretensos hiper-realismos”, Tarantino teria mostrado que, em meio ao “colapso de destruição [da guerra], não há ideologia que sobreviva: só a sede [violenta] de reparação imediata, quase simultânea”.

É importante notar que esses pontos estão presentes nos próprios comentários que o diretor fez sobre o filme. Para além de qualquer revisionismo explícito do episódio da guerra, Tarantino afirma que buscou fazer somente uma “obra de arte”, e que o longa, ao contrário da pretensão de alguns, deveria ser interpretado somente enquanto tal. Aqui chama a atenção exatamente para o seu objetivo com o cinema: transformar linguagens estéticas mais diversas e organizar novas referências e tramas; enfim, usar e abusar da busca constante pela “inovação” cinematográfica – o que inclusive lhe rendeu a crítica de ser uma eterna criança fascinada com seus brinquedos. É nesse sentido que repete, mais uma vez, agora em Bastardos Inglórios, que seus filmes não são para ser vistos por um “qualquer público”, mas por quem saiba apreciar a sua “arte”; perspectiva que evidentemente contrasta com a surpreendente visibilidade e rentabilidade financeira que recebeu o filme em todo o mundo.

Para alguns, por mais que o diretor não explicite diretamente esta finalidade, a “eterna criança” cresceu com Bastardos Inglórios – principalmente ao escapar das imputações maniqueístas que ainda marcariam o tema da segunda guerra mundial, colaborando para, enfim, construir uma nova visão da guerra. O que fica patente em minha visão é que, nesta “obra de arte”, a explosão do conflito generalizado e as conseqüências mais impensadas e dramáticas projetadas na vida das pessoas durante uma guerra, dão lugar à disputa particular entre os personagens caricaturais de judeus e alemães. Longe de organizar uma trama complexa e problemática naquele contexto de guerra, Tarantino revela apenas caricaturas elevando ao máximo as suas obsessões (o americano caipira e bruto, a francesa blasé, o inglês supereducado, os nazistas engomadinhos). Aqui estamos muito distante da idéia clássica que fazemos da segunda guerra: a guerra não corrói certezas nem força os atores sociais a buscarem uma resposta em meio à destruição. Ao invés de uma disputa ideológica antagônica temos um quadro no qual as ações individuais dos personagens, mesmo que envolvidos na problemática da guerra, correm paralelamente a qualquer possibilidade de ação coletiva na conjuntura. Mas este quadro não se expressa como a visão da guerra explícita do diretor, como alguns críticos quiseram ver: ele é traçado unicamente como "imagem", à maneira pós-moderna, bem à la Tarantino. Uns acreditam que foi justamente esse aspecto que incomodou os críticos “moralistas”, por destruir qualquer possibilidade de existência de uma ética ideológica da segunda guerra. Ao contrário, penso que a construção da trama e a própria ação caricatural dos personagens contribui para que, ao invés de identificarmos a complexidade da guerra e constarmos a falência de uma interpretação ideológica que passe por cima de tudo a fim de afirmar determinada legitimidade de ação, organizemos um distanciamento forte em relação a toda a problemática do evento.

No entanto, devemos nos esforçar para perceber que, se Tarantino insiste em afirmar somente a sua intenção “artística”, o filme não deixa de suscitar questões e dialogar com o enquadramento da memória que possuímos do período. Voltar ao contexto da segunda guerra pode ser uma escolha, acima de tudo, “estética”, nos termos do diretor, mas ela também não deixa de mobilizar e dialogar com as fortes referências culturais que possuímos do conflito. Tarantino insiste que seus personagens são “seres humanos” inventados que não podem ser encaixados em modelos de “bom” ou “mau”, mas a forma como ele constrói a trajetória deles não dimensiona um envolvimento mais “real” na própria problemática da guerra. A guerra existe apenas como um grande pano de fundo: os personagens atuam e podem mesmo mudar o seu curso (como de fato acontece no filme), mas eles não o fazem pelas razões que estiveram presentes na deflagração do conflito: mostra-se um Hitler obsessivo e completamente inseguro que busca na expansão alemã o remédio de seus problemas emocionais; um oficial da SS que aproveita o contexto da guerra para ascender na burocracia nazista; um norte-americano descendente indígena que se aproveita da guerra para por à prova a sua brutalidade interiorana; um soldado nazista que procura ganhar a simpatia do regime; enfim, uma judia que busca vingar pessoalmente a morte de toda a sua família. Como falei, acredito que tanto a construção da trama quanto a ação caricatural dos personagens contribuem de forma fundamental para o esvaziamento de uma discussão mais densa sobre o tema. Tarantino afasta-se completamente do “real” da segunda guerra, para em meio a ele, construir a sua trama “por fora” – e mesmo nos mostrar que esta poderia guardar um final surpreendente. Como avisou em uma entrevista, essa é a “vingança da história”. Imagine a ironia se a guerra, tão “importante” para uns, fosse resolvida por um desses personagens? Certamente, se isso tivesse ocorrido, o diretor teria possuído um material ainda melhor para construir seu filme, justificar um distanciamento da problemática, e, como quer, divulgar a sua “arte” para seu grande (e lucrativo) público “seleto”.

Referências de algumas críticas e entrevistas
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1328761-7086,00.html
http://www.omelete.com.br/cine/100022604/Critica__Bastardos_Inglorios.aspx
http://portal-cinefilo.com/entrevista-tarantino-fala-sobre-seu-mais-novo-filme-%E2%80%9Cbastardos-inglorios%E2%80%9D/
http://oglobo.globo.com/blogs/arnaldo/